Por Kátia Adriana Cardoso de Oliveira

Antes, sociedade e mercado discutiam se crianças poderiam estar online. Hoje, a pergunta tornou-se mais exigente: como as plataformas demonstrarão que os produtos e serviços digitais oferecidos não comprometem o desenvolvimento, a integridade e os dados pessoais de menores?

A infância brasileira ingressou no universo digital antes de dispor de uma estrutura regulatória robusta, e o cenário de 2025, com a promulgação da Lei nº 15.211, o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital), converte essa lacuna em um desafio estrutural e, simultaneamente, em uma oportunidade para o setor de software, ao impor requisitos que ultrapassam a mera conformidade legal, exigindo que as empresas traduzam princípios abstratos em processos, tecnologias e métricas verificáveis, com impactos diretos sobre produto, arquitetura e estratégia de mercado.

Nesse cenário, um dos principais desafios está na tradução de normas de alto nível em especificações técnicas, fluxos operacionais e métricas de desempenho. Privacidade by design e by default deixam de ser slogans e passam a constituir critérios concretos objetivos que orientam decisões arquiteturais, desde o tratamento de identidade até políticas de retenção de dados. A verificação etária demanda soluções que conciliem precisão, proporcionalidade e minimização, sem transformar o mecanismo em vetor de coleta excessiva.

Já a moderação de conteúdo requer integração entre sistemas automatizados e equipes humanas capacitadas, com trilhas de auditoria que permitam revisão externa. O reporte de incidentes e de indicadores de proteção exige pipelines de dados confiáveis, painéis de governança e rotinas internas capazes de transformar eventos em lições — e em evidências verificáveis de conformidade.

Essa complexidade técnica, porém, não esgota o debate. Há um elemento igualmente determinante para o mercado brasileiro: a heterogeneidade social e digital das famílias. Crianças e responsáveis apresentam níveis variados de literacia digital, acesso e repertório crítico, o que significa que as empresas não atuam apenas sobre código, mas sobre ecossistemas humanos.

Isso exige abordagens inclusivas, materiais explicativos adequados, integração com políticas públicas e investimento em usabilidade que facilite a mediação parental e a compreensão de riscos, abrindo espaços para o próximo nível da discussão: como transformar essa maturidade regulatória em diferenciação real no mercado e em responsabilidade compartilhada em toda a cadeia de valor digital.

Embora o ECA Digital dialogue com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ao estabelecer um arcabouço protetivo mais intenso para menores, persistem pontos de compatibilização entre bases legais, modalidades de tratamento e regimes sancionatórios. A LGPD oferece múltiplas bases legais para o tratamento de dados, enquanto o ECA Digital enfatiza, em determinados contextos, o papel do consentimento e impõe requisitos específicos de verificação etária.

Dra. Katia Adriana Cardoso de Oliveira

Ademais, apesar de aparentarem convergência, os regimes sancionatórios divergem de forma significativa: o ECA Digital prevê sanções escalonadas que, mesmo em etapas iniciais, possuem potencial de impacto reputacional e operacional relevante. Advertências com prazos curtos para correção, multas expressivas, suspensão de funcionalidades e até proibições de operação podem comprometer roadmaps, contratos e a confiança do mercado.

Outro ponto crítico diz respeito à infraestrutura institucional e às lacunas operacionais. O Brasil ainda carece de mecanismos estruturados para recepção de comunicações de plataformas referentes a conteúdo de abuso e exploração infantil.

Em outros países, há entidades centralizadas que agregam e distribuem alertas para investigação, enquanto aqui será necessário construir protocolos claros de cooperação entre plataformas, autoridades policiais, conselhos tutelares e agências regulatórias. Sem essa infraestrutura, a obrigação de notificar e remover conteúdos corre o risco de tornar-se uma formalidade sem tradução eficaz em proteção real. O setor privado, portanto, precisa exercer papel ativo, tanto adaptando seus sistemas quanto engajando-se em diálogo com o poder público, para definir padrões técnicos e operacionais viáveis.

Esse esforço também incide sobre empresas transnacionais. A exigência de representação legal no Brasil para plataformas estrangeiras reduz zonas de não jurisdição e facilita a execução de decisões e a interlocução com autoridades. Contudo, sua implementação ocorrerá em ambiente de heterogeneidade regulatória internacional, demandando coordenação entre equipes globais de compliance, product managers e times jurídicos.

As empresas precisarão desenhar políticas globais que permitam localizações técnicas e jurídicas, garantindo coerência de segurança e interoperabilidade, sem fragmentar de forma indevida a experiência do usuário.

Diante desse quadro, a conformidade proativa passa a ser não apenas uma exigência, mas também um vetor de competitividade. Reduz riscos de interrupção de serviço, litígio e perda de clientes, além de acelerar parcerias com entes públicos e privados que buscam fornecedores confiáveis para iniciativas educacionais e sociais.

A adequação efetiva envolve um plano estruturado que inclua diagnóstico de aplicabilidade, mapeamento de riscos, revisão de produto e arquitetura, atualização de termos e políticas, operacionalização de procedimentos padrão para moderação e resposta a denúncias, formação de equipes de compliance e segurança e, quando necessário, a nomeação de representante legal no país. Recomenda-se, também, engajamento ativo com autoridades e participação em consultas públicas, inclusive dessas crianças e adolescentes, de modo que as soluções técnicas adotadas sejam viáveis, inclusivas e harmônicas com o interesse público.

Nesse arranjo, as empresas de software ocupam posição estratégica ao transformar obrigações legais em soluções tecnológicas capazes de garantir segurança, verificabilidade e proporcionalidade no ambiente digital. Isso significa desenvolver padrões de interoperabilidade, aperfeiçoar mecanismos de verificação etária, fortalecer sistemas de moderação mais transparentes e estruturar rotinas de governança que permitam calibrar continuamente a implementação, preservando, sempre, a centralidade dos direitos fundamentais.

O ECA Digital redefine, portanto, a governança tecnológica no país ao inaugurar um novo pacto entre sociedade e plataformas digitais. Práticas antes voluntárias tornam-se obrigações auditáveis e rastreáveis, elevando a proteção de crianças e adolescentes ao eixo central da engenharia de produtos.

 O futuro do mercado brasileiro não será moldado pelo software mais veloz, mas pelo mais responsável, porque proteger a infância deixou de ser apenas uma exigência jurídica e passou a constituir a nova fronteira da inovação, da confiança e da liderança digital.

Kátia Adriana Cardoso de Oliveira é advogada, doutoranda em Direito com pesquisa em proteção de dados e inteligência artificial e pesquisadora sênior do Think Tank da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES).

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